Brevemente

Galo

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Por Guilherme d'Oliveira Martins
Presidente do Centro Nacional de Cultura

 

Falar de um galo em Portugal não é evocar um símbolo insignificante, mas chamar à lembrança raízes culturais profundas que vêm do passado e se projetam no futuro e além-mar. Mas ninguém duvida de que é um símbolo forte - e não é de mais lembrar que, na etimologia grega, símbolo é exatamente aquilo que une, por contraponto a diábolo, o que divide… Alguns dirão, erradamente, que o galo é uma invenção relativamente recente, vinda de uma lenda, talvez seiscentista ou setecentista, de um galo que salvou um condenado injustamente ou de uma descoberta tardia nas feiras de Entre-Douro-e-Minho. O "nosso" galo de Barcelos, que Joana Vasconcelos estilizou e enriqueceu decorativamente, tornando-o ainda mais simbólico de nós mesmos, vem inequivocamente do nosso fundo céltico – esse fundo que António Pedro sentia no âmago de si mesmo e que o levava a gostar de gaitas de foles e das cores garridas que Amadeo de Souza Cardoso tão bem soube transmitir nas suas telas inesquecíveis e irrepetíveis. O gal de Portugal não engana. Aí está o elemento indo-europeu que nos liga aos Gálatas, do Médio Oriente à Turquia, à Galícia polaca, ao País de Gales, aos Gauleses, à Galiza – todos irmãos.

É verdade que Leitão de Barros, António Manuel Couto Viana e Artur Maciel foram em busca de um símbolo popular – encontrando-o e enriquecendo-o com cores fortes e corações ilustrativos de mil afetos -, no entanto, já Rocha Peixoto, no século XIX, nos fala do "Galo de apito", que ainda se encontra nas feiras e que tem a ver com a forte simbologia de quem anuncia, na aurora, o novo dia e um novo tempo. O nosso inconfundível galo insere-se na tradição dos druidas, mas também na simbologia cristã de S. Pedro. O galo é arauto da luz do sol, mas também sinal da verdade e da fidelidade. Tendo sido redescoberto nas feiras de Entre-Douro-e-Minho e pintado com as cores fortes que conhecemos, é o revelador de um amorável coração, do amor como contentamento descontente da lavra camoniana, mas também da saudade como lembrança e desejo e de magníficos ágapes, banquetes de amor e amizade, que encontram a sua origem na mais afetuosa das palavras gregas. Culturalmente, o galo significa ainda o cadinho, o "melting-pot", que nos caracteriza neste lugar onde a terra acaba e o mar começa, Finisterra.

Os múltiplos caminhos do mundo que os portugueses foram trilhando levaram os nossos símbolos até às Índias, a África, ao Brasil.… Eis por que motivo a referência às raízes antigas tradicionais, históricas e populares constitui um elo intenso que nos permite perceber que uma identidade cultural ou linguística apenas pode afirmar-se se não se fechar sobre si mesma e se se relacionar com outras realidades e influências.

O tema da identidade cultural exige a compreensão de que só a abertura e o diálogo, a relação fecunda entre a herança e a memória, o entendimento dinâmico de património podem permitir o desenvolvimento de uma cultura de paz e de respeito mútuo. A identidade que cristaliza morre. A memória que se centra exclusivamente no passado mítico torna-se pobre, ensimesmada e ressentida. A herança que não se fortalece com a criação contemporânea e com um permanente renascer crítico dissipa-se.

A referência da utopia de Tomás Morus é-nos trazida por um marinheiro português. A ideia da viagem à Índia ou de passar para além da Taprobana corresponde a um apelo à aventura criadora e criticamente reconstituidora dos mitos.

Como podemos entender o Candomblé e a religiosidade sincrética – reunindo animismo e tradição cristã – que liga o Senhor do Bonfim à corte dos orixás, tão presentes desde S. João Baptista de Ajudá a Salvador da Baía? Oxalá, o grande Senhor de Todos, e Iemanjá, a Deusa do Mar, dominam esse Olimpo. E o galo é a ave de batalha, o anunciador de bons augúrios. 

Eis por que razão o Galo não é uma marca regionalista ou de recente data, é uma marca antiga e um passo universalista. Afinal, trata-se de um símbolo para ir, pela crítica, além dos mitos.

 

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